segunda-feira, 11 de maio de 2020

Da ausência

Se o divino ofertou benditos tempos,
O mal criou memórias de momentos.
São feridas de instantes em algures,
Não as curam os tão nobres doutores,
Remanescem somente em nossos sonhos.

E se há algo mais forte ou amargo
Desconheço sua tão vil existência,
Pois o tempo criou a dor d'ausência
Como num corte feito no sabugo,
Como se fosse o mais triste epílogo.

Stella Araujo

quinta-feira, 7 de maio de 2020

Fullgás

A vida sorvo tal fera sedenta:
Só assim se conhece o prazer.
Quando vinho em taça for verter,
Debruça e serve de forma mais lenta.

Porque a gravidade é resposta...
Une cristal e álcool pra beber;
Boca, língua e pele pra lamber;
Corpo, alma, amor que se exorta.

A força que responde à solidão
É invisível ao olho humano
Sempre coberto pelo doce engano.

Toma da taça como d'um veneno
Como se a vida fosse breve aceno,
Como já lhe falhasse o coração.

Stella Araujo

terça-feira, 28 de abril de 2020

Sussurros

Se eu tivesse nos lábios todos versos
Te daria as letras como selos.
E as portas seriam tuas passagens,
Para tua água que toca minhas margens.

Levas meus grãos de terra tão sedentos
Que te juro que em minhas pastagens
Te seriam perpétuos os meus votos,
Como são os das santas monjas virgens.

Porém, em teu regaço já há flores,
E em mim jazem de amores outros restos,
Decompostos em massas e odores.

Acontece que tu a terra feres
Quando passas corrente como os rios,
Quando és água sob novas pontes.

Stella Araujo

sábado, 28 de dezembro de 2019

Metapoema III

Se pensas que há sofrimento nestas letras,
Ou que meus versos choram saudades,
Saibas que lavo as mãos.
Depois que nasce o poema
E se consuma o parto
Este parte pro mundo.
O poema desabrocha solitário
Sem pai nem mãe.
O poema sai pelo mundo
-do leitor-
Sem parentes ou amigos.
É mundano, cortesão de vida fácil,
Se entrega a qualquer letrado.
O poema se entrega ao teu prazer,
Diz o que queres ouvir,
Não tem vontade ou querer,
Não passa de um devir.

(Stella Araujo)

segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

Signos linguísticos

Inquieto-me com o nome de todas as coisas
E creio que no nome - na palavra -
Existe uma essência divina
Que recobre a substância de significado.
Como se na semântica do ser
O que é próprio atraísse certos interesses,
Coisas tão nossas.
Aquieto-me em meu nome,
Sendo tão eu, descanso em minha acepção.
De uma forma maior que a dos horóscopos
Sinto que as palavras regem o universo e,
Ainda mais que os planetas,
São as letras os sinais que
Formam os mapas astrais.

(Stella Araujo)

quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

Ignoto

Sinto um poder que emana
Do choque da audiência,
Do pavor do público.
E quando os que me assistem
Arregalam os olhos de espanto,
Só ai estou satisfeita.
Porque a vida só faz sentido
Quando espavorida pelo novo,
Quando se esclarece o obscuro
Para que então se repita o ciclo
Através do tempo.

(Stella Araujo)

sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

Pausas

É um exercício interessante ler sem limites escrever sem pontos Só não abandono as maiúsculas Não por respeito mas para aumentar a agonia o pranto da gramática

A comunicação é poética mesmo e principalmente quando errática

A vida é bonita mesmo quando o texto não condiz com a norma culta tão pragmática
Deixo para quem quiser pontuar
o tempo da interpretação que faz de si

Stella Araujo

terça-feira, 10 de dezembro de 2019

Paternogênese poética

Um pedacinho da alma do autor,
Aquele com o maior poder de criação, 
Sozinho por mitose das palavras
Gera os mais belos poemas.
Filhos queridos!
Criados com zelo de mãe,
E disciplina de pai,
Sem estrelas, cruzes ou epitáfios.
Não devem ter aniversário...
São palavras eternas e não datadas,
Lidas por silenciosos leitores
No solitário silêncio do eu.
Estão no coração de quem os escreve,
Mas também de quem os lê.
Pedacinho de vida,
Um complexo arranjo de células,
Palavras que se juntam em diferentes 
                                                             [funções.
Fala, anda e pensa sozinho,
Com verbos infinitos e infinitivos,
De onde surgem as frases e orações
Como louvores para um novo mundo
Baseado no que há de divino em todos nós.

(Stella Araujo)

domingo, 6 de outubro de 2019

Vida neológica

Parto como quem nasce pro novo.
Vou sentir falta de partir meu tempo
Com quem amava e andei por esse tempo.
Mas agora estou em um novo momento.
É sempre difícil partir,
Mas existem formas piores
E muito mais eternas de ir.
Cada sonho de sangue uma gota,
Cada gota uma felicidade,
Cada felicidade um alguém.
Mas a vida tem dessas coisas,
Tem mil significados como as palavras.
Eu crio o neologismo que me apraz.
Minha vida é tão poética
Que faço de partir chegar
E do fim começar.
Mas não posso perder a coesão.
Não misturo os significados.
Uso um de cada vez
Abrindo mão de vez em vez.
Minha vida é assim partida
com migalhas por onde eu passo
para que a felicidade
Nunca deixe de seguir meus passos.

(Stella Araujo)

quarta-feira, 2 de outubro de 2019

Solitude

Minh'alma sequiosa feito cão
Vagando pelas ruas sem ação
Busca saciar tudo de humano
Que resta em meu corpo leviano.

Meu espírito tão cartesiano
Em poesia descreve o mundano
Em eterna espiral de aflição:
A solitude não é solidão

Prefiro estar só e então só ser,
Sentir o que me cabe aprender,
Em mim e em todo mundo existir.

Solidão é um gráfico revólver
Com a mira sob o que não Revolver.
Em solitude eu vou resistir.

(Stella Araujo)

sábado, 28 de setembro de 2019

Inefável


Gosto do que não posso nomear:
Do que não é conceito, mas empírico;
Do que não é matéria, mas espírito;
Do que é esperança, não certeza.
Não passo eu mesma de breve poeira...
Uma humilde existência no universo.
Sou grão de gente, isso eu bem sei,
Mas não há nada mais belo que ser;
Nada mais bonito que existir.

E o amor que rege todo cosmos
Sintetizo em ser e sempre estar.

(Stella Araujo)

terça-feira, 17 de setembro de 2019

Interlocutor


As reticências que eu pus em nós
São sintomas da minha insistência
Em prolongar o que já teve fim...
As vírgulas que estão após seu nome,
Vocativos da tua breve presença,
São pausas que indicam tua ausência.
Te prendi num aposto explicativo
Dos sintomas da minha inocência.

Tu és, assim, sujeito tão oculto
Que não sei quem és além da aparência.

(Stella Araujo)



terça-feira, 10 de setembro de 2019

Da Morte


A Morte é um não mover.
É a substantivação do verbo
E o momento da medida de tudo:
Do livro inacabado,
Das palavras silenciadas,
Do tempo perdido.

A Morte não é a ausência da Vida,
É a ausência do Viver.

(Stella Araujo)

domingo, 8 de setembro de 2019

Hipocrisia


No breu do preconceito se esconde
E está longe do cérebro e razão.
Não sei onde se oculta desde Adão,
Nem a qual dos pecados se responde...
Nem que o peito do homem então sonde
Saberei dizer sua localidade.
Seja a inveja talvez sua mãe e deidade,
Ou quiçá seja sua amiga a mentira
Que está sempre a espreita na cegueira
Dos que creem conhecer toda verdade.

(Stella Araujo)

terça-feira, 3 de setembro de 2019

Lua cheia


A saudade matei de fome e sede
Pra que ela não mate o meu melhor,
Mas eu sei cada traço seu de cor.
A tua falta me aperta amiúde,
Mas não há sentimento que eu desnude.
Eu te sinto presente feito onda
Vai e vem com a maré que é impulsionada
Pela lua que brilha em noite cheia.
Feito água, escorre e me meneia.
De você, então, me sinto alagada.


(Stella Araujo)



domingo, 1 de setembro de 2019

Grão

Vivo livre no vento a voar,
Meu contento é não ser e sempre estar.
Não sei pra onde vou nem que farei,
Sou dono de mim como um grande rei.

Viajei, conheci tanto lugar...
Difícil pensar que em ti quis ficar.
Desci ao chão e no solo brotei
Abri mão de mim isso eu bem sei

Descobri que não passo de poeira
Dessas que não têm nem eira nem beira.
É triste se olhar assim em retalho.

Renasço em um broto de sementeira
E agora sei que a vida é passageira.
Desço ao solo, mas meus ramos espalho.


(Stella Araujo)


sexta-feira, 30 de agosto de 2019

Martelo agalopado I

A linguagem é um corsel domado
Que o poeta cisma em tornar selvagem.
O que diz não realiza, é miragem.
Quando em prosa tão forte puxa o arado,
Quando em versos sai louco e danado.
Acontece que isso é liberdade,
Já existe há tempos sem idade.
Mas eu sou amazona destemida
Já conheço um tanto dessa vida.
No galope encontro a verdade.


(Stella Araujo)

quarta-feira, 28 de agosto de 2019

Autoconhecimento

Entro em mim armada até os dentes
De pensamentos um pouco mais crentes.
Minha mente é inóspita, violenta,
Cheia de pré-conceito e tormenta.

A humanidade é má, sempre sedenta.
Por poder e fortuna a todos mata.
Mata a alma dos bons, dos reverentes,
Mas entre nós há sempre os renitentes.

Prossigo em minha luta contra mim,
Contra a ignorância que me habita...
Essa guerra que sei ser infinita.

Pior acreditar que eu sou perfeita,
Melhor saber quem sou e então reflita.
Meus pensamentos não são um jardim.


(Stella Araujo)

domingo, 25 de agosto de 2019

Decomposição morfológica

O corpo é banal,
Vestígio de poeira cósmica.
A alma não...
É infinita,
Não retorna ao chão.
Permanece em tudo que tocamos.
A vida, substantiva, é eterna.
Viver, ação, é que acaba.

Nascemos do verbo
E ao verbo retornaremos.

(Stella Araujo)

quarta-feira, 21 de agosto de 2019

No mar Icariano

O que eu senti me deu asas de cera,
Liberdade em voar plena em ardor.
Mas você era o sol que me obscurecera
Com seu sorriso e brilho tentador.

Derreti com seu jeito sedutor
Que no final nem mesmo me valera,
Que me fez arriscar e não me opor,
E então despencar em queda mortífera.

Perdi todas as minhas finas penas.
Elas jazem nessas águas serenas
De ousadia que é minha sepultura.

O sol mata insensatos às centenas.
Meus ossos em ruínas obscenas:
A queda é coincidente com a altura.

segunda-feira, 19 de agosto de 2019

Momentum do tempo

Todos nascemos doentes do mesmo mal:
Somos todos vítimas de um tempo final.
Esse sujeito que como o vento não se vê.
Não há tempo no relógio, na sombra ou na                                                                               [TV.
Doença implacável que não tem cura,
Enruga a pele e deixa a mente escura.
Desfaz os laços e leva os amores
Cria tantas feridas e tantas dores.
Não é por outro motivo que morremos
Que não pela medida de vida que nos cabe.
Uma pena que nunca soubemos
Morrer de forma digna de verdade.
Não há dignidade na vida.
Não há beleza na eternidade.
Só vive quem sabe que morre
E essa é a verdadeira liberdade.
Não há mal que o surpreenda,
Nem incidente que o assuste.
O tempo é deus soberano
E com ele não há ajuste.


(Ella Maria)

quarta-feira, 14 de agosto de 2019

Procrastinação

O óculos deita sobre minha mesa,
Já não tenho nem uma só certeza.
Os livros empilhados na estante
E minha mente voa tiritante.

A situação é periclitante,
O status não volta pro quo ante.
Como um sistema de autodefesa
Os deveres parecem ser proeza.

O corpo entra em tendência de repouso,
Sinapses e cérebro incluso.
Não consigo fazer porra nenhuma.

Ansiedade me deixa em parafuso,
Meu cérebro está muito confuso.
Pelo menos poesia eu fiz uma.


(Ella Maria)

segunda-feira, 12 de agosto de 2019

Maré alta

Meus pensamentos
são ondas que
cobrem
e
descobrem
finos grãos
de sentimentos.

Há risco de alagamento.

(Ella Maria)

quarta-feira, 7 de agosto de 2019

Sinfonia

Um dia
ainda conserto
o desconcerto
que esse
concerto
fez no meu
coração
Desconsertado.

(Ella Maria)

segunda-feira, 29 de julho de 2019

Ouro dos tolos

Amor, um sentimento tão travesso.
Qual ouro, mas não se pode dar preço.
No coração se marca como escrita
Enquanto o peito não bate, saltita.

Nessa desabitada mina desço
E minha vida vira do avesso.
Não era ouro, era uma pirita,
Mas a maldita era tão bonita!

Enche de cores toda a minha rua,
Essa que já foi minha e também sua.
Porém, já sei que de nada me vale.

Estamos tão distantes quanto a lua
Que diante da Terra está nua.
Somos no universo um detalhe.

(Ella Maria)

sábado, 27 de julho de 2019

Não é um poema de amor

Já não faço poemas de amor,
Mas não pense que isso é por rancor.
É que não sou Florbela para amar,
Sentir paixão e então fantasiar.

Escrevi um poema de amor.
Te peço perdão, meu caro leitor.
A intenção não era te enganar,
É que me perco a devanear.

Ocorre que se amor é fogo, arde.
Se arde é porque é incandescente,
Brilha e dói forte bem dentro da gente.

Não quero que você seja um covarde,
Mas o amor não se entrega ao imprudente,
Um descuido e a dor é decadente.

(Ella Maria)

quarta-feira, 24 de julho de 2019

Manual de Instrução

A vida é ilegível,
Mas elejo caminhos
Todos os dias.
Não sei como
Ou o porquê.
Aceito as condições
Sem ler.

(Ella Maria)

segunda-feira, 22 de julho de 2019

Probabilidade

                          Somos apenas duas
Entre sete bilhões de pessoas
Em duas centenas de países,
Com uns sete milhares de idiomas,
E mais uns tantos deuses.
                          Ou encontros são milagres,
                          Ou tremendos enganos.
Nesse louco cálculo vital,
Qual a probabilidade de dano?
                          Três passos para a esquerda
                          Numa descida ín
                                                         gre
                                                               me
                          E se está apaixonado?
Queria o destino juntar
Duas almas descontentes
Ou quis o coração criar
E para o cérebro mente?
                          Tempo e Espaço
                          É o que nos separa.
                          Tempo e espaço
                          E a razão da gente.

(Ella Maria)

domingo, 21 de julho de 2019

Sagrado

Poesia é um milagre
Sem ter religião.
É vinho, é vinagre,
É minha extrema-unção.

É pra que se consagre
Palavras à razão.
E poeta se sagre
Sem ter qualquer grilhão.

Poeta não é santo,
Mas através do espanto
Escreve sua mensagem.

Não tem reinado e manto,
Porém produz encanto
Se enfeitiça a linguagem.

(Ella Maria)

sexta-feira, 19 de julho de 2019

Rituais noturnos

A noite embriaga mais que álcool
E as madrugadas são ópio do poeta.
São nelas em que eu descuidada
Digo as verdades mais inquietas.
Em surtos sonâmbulos dispo
A verdade ocultada
E ela passeia nua e livre
Isenta de razão e vaidade.
Surge de minhas palavras
Soltas e despretenciosas
E no ego já não está envolta.
São gemidos inaudíveis
Que sobem a garganta
Em rituais noturnos.
Ébria já não penso,
Só sinto o mundo
Em suscintos lampejos
De momentos presentes.
Já não sou nada,
Não sei nada,
Só busco contento.
E nesse momento
Sou porque estou
Não pensando
E por isso vivendo.

(Stella Araujo)

quarta-feira, 17 de julho de 2019

Moinho

Verteu-se no copo o vinho
E embriagou meu caminho.
Entre taças e garrafas
Vejo imagens amorfas.

Enquanto eu assim definho
Triturada em pó miudinho
Enfeitiçaram-me as ninfas
Com lindas juras apócrifas.

Morro assim devagarinho
No que já foi nosso ninho
Formando adubo na terra.

É que o amor é moinho,
Apodrece se sozinho
Não renasce quando erra.

(Ella Maria)

segunda-feira, 8 de julho de 2019

Metapoema II

O poema nasce de um formigamento,
Do meu sangue que fervilha
Aquecido pela alma comprimida.
E assim de tempo em tempo
Percorrem minhas veias
Esses pedacinhos de mim
Que entre células se ajuntam
E formam palavras desnudas.
Sem vergonha nem limite
Constroem versos e poesia.
Quando de mim se desprendem
Deitam plácidos no branco
Do papel ou da tela.
Quando de mim nascem
Já não são mais meus,
Mas sou eu infinitamente.

(Ella Maria)

domingo, 7 de julho de 2019

Voz reflexiva

Alguém me amou.
Um amor incompleto,
Porque minha parte faltava.
Então eu amei alguém
Num amor inacabado
Que não estava por perto.
Passiva e ativa
Perdia-me de mim.
Finalmente descobri
Que eu me amando
Era plena enfim.
E se amar-me-ia,
Hoje amar-me-ei,
Porque se não me amo
Não me conhecerei.

(Ella Maria)

sábado, 6 de julho de 2019

Sanidade

Em que idade a vida desafina
E a sanidade é estar na linha?
Seria essa então a nossa sina?
Viver uma existência tão mesquinha?

Todo dia vivendo uma rotina
Ciente de que a morte se avizinha?
Só ver o amor passar não me convinha,
Como bater o dedo numa quina.

Por isso escapei de todos limites.
Treslouquei não aceito mais palpites.
O que importa ser são se não se é?

Merecemos conosco estarmos quites
Antes que esse poema então recites
Saber que a vida é que nem maré.

(Ella Maria)

quinta-feira, 4 de julho de 2019

Metapoema I

O verso é livre e eu também
Nele digo tudo que penso
E ainda o que me convém.
Não se deixe confundir pela poeta,
Pois ela não existe.
Finge que sente amor e dor
E que a eles não resiste.
Não se nega que estão presentes,
Mas o tempo e modo são diferentes.
A poesia vive da imaginação,
Das rimas e da transformação.
Não cabe nesse mundo vasto
Nem apenas no meu coração vão.

(Ella Maria)

domingo, 23 de junho de 2019

Felicidade Petrarca

Felicidade está em um abrigo
No abraço doce de um velho amigo.
Surge externa brincando num sorriso,
Não precisa fazer qualquer aviso.

É não se importar com o perigo.
Sabendo que vale a pena o persigo.
Encontro no gramado em que eu piso
E mesmo num amor que improviso.

É eterna, mas passa num instante.
Suficiente para pôr na estante
Das felizes memórias para urgências.

Semente para que você a plante.
Para que na estiagem desgastante
Não venhas a sofrer com as ausências.

(Ella Maria)

sexta-feira, 21 de junho de 2019

Expondo os miúdos

Eu guardei a tua medida do Bonfim
E tu podes levar teu Pixinguinha sim.
Trocando em miúdos, já não te quero ver,
Aos teus fantasmas eu não pretendo ceder.
A nossa aliança vou guardar, ou perder.
Pode crer, lágrima minha tu não vais ver.
Saiba que os estragos foram mútuos no fim.
Não há amor que termine tão fácil assim.
Aliás, eu já encontrei meu futuro amor,
Passei a me amar já não te tenho rancor
E sobre os teus defeitos não farei alarde.
Ficou a certeza de que pra nós é tarde.
Acredite, de mim nunca foste credor,
Eu ouvi o portão fechar cheia de dor.

Expiação

Espiei por esses teus olhos pensamentos,
Lá encontrei só névoa e ressentimentos.
Tentei expiar a dor que te consumia,
Porém meu sentimento era utopia.

Éramos dois bêbados em contentamentos
Quando não preparamos nossos testamentos.
Enquanto nosso castelo então ruía
A gente nem mesmo com dor se despedia.

Sim, resignada cortei-lhe a garganta,
Sobre o finado joguei uma leve manta.
Ali jazia o amor nú, sem esperança.

Porém vira e mexe o vento nos balança
E por alguns minutos meu coração canta,
Não passa de um fantasma que a razão espanta.

domingo, 16 de junho de 2019

Religião

Nossos demônios estão no que é belo
Não se engane com a beleza divina.
Meu mal está em seus olhos que adulo,
No teu corpo que desço tal qual duna.

Tua pecaminosa voz me ufana
Queima minh'alma já não plena e digna,
Me arrasta pelo inferno em que me exilo.
Onde em grande êxtase não vacilo.

Nos cabelos por que passo as mãos,
Nos teus braços que forçam o caminho,
Sou toda teu desejo em descaminho.

Com os lábios embebidos em vinho,
Com o torpor de sentir teu carinho,
Assim não somos mais tão bons cristãos.

(Ella Maria)

quinta-feira, 13 de junho de 2019

Morte e vida carioca


Enquanto a cidade e seus habitantes eram engolidos pela noite, pontos de luz surgiam no meio da decadência daquele lugar. Entre mendigos esquecidos, prostitutas tristes e trabalhadores cansados tudo era escuridão, sombra, e a beleza do que a luz iluminava. Cecília caminhava na calçada escura da rua do Lavradio em direção à avenida Chile quando avistou a Catedral de São Sebastião. Uma estrutura alta, iluminada, piramidal, como as construídas pelos maias e astecas. A visão do lugar tão semelhante ao que antes era usado pelos povos pré-colombianos para mortes violentas em homenagem a seus deuses e manutenção da vida na terra era assustadora. Distraída por seus pensamentos, a menina tropeçou em um homem de barbas e cabelos longos e grisalhos e roupa puída e suja que estava jogado no chão. Com os olhos vidrados disse-lhe: "o sacrifício somos nós". Aquilo ecoou na sua mente como um sino que badala e estende seu som pelo espaço. Um aviso mortal e cruel do mundo. Eram 22h e os executivos ou estavam com suas famílias em casa, ou nos pontos de luz que iluminavam os prédios comerciais, ou na escuridão dos relacionamentos extraconjugais. Sozinha na rua, Cecília era solidão, medo, mas também admiração pelo contraste entre o terror e a beleza do lugar. Era um quadro cruel e belo de sombra e luz em que mulheres se ofereciam aos carros que passavam perto da sagrada Catedral. Enquanto observava curiosa a paisagem e seus personagens, um olhar brilhante e cruel cruzou o seu. Era uma mulher baixinha em grandes saltos, com um vestido que lhe comprimia o corpo robusto, emoldurado por cabelos artificiais. Parecia sujeitar as outras que trabalhavam naquele ponto e gritou quando viu Cecília passar: "Aqui não entra novata, meu bem!". Sem entender o aviso, Cecília continuou seu caminho em direção à Rio Branco. A baixinha tirou não se sabe de onde um canivete que enfiou o mais fundo que pôde no peito de Cecília que caiu ensanguentada agarrando-se às grades da catedral. E aquele ato, na pequena cabeça da baixinha asseguraria a manutenção da sua existência e de seu mundo tal como era e sempre foi. A menina jorrava sangue espesso e vermelho formando uma poça e logo um rastro até as portas do santuário onde foi encontrada de madrugada por um segurança. Estava fria, branca e com as mãos estendidas em direção à cruz. A foto escatológica saiu nos jornais da manhã, cobriu o Centro da Cidade de medo e horror, mas logo a vida seguiu e o mundo girou como todos os outros dias.